segunda-feira, 3 de março de 2008

O tempo de Vieira

Michelangelo Merisi da Caravaggio (1597-1598), Judite e Holoferne



BARROCO E CONTRA-REFORMA



O surgimento do estilo Barroco está estreitamento associado à Reforma Católica e às disposições saídas dos longos debates ocorridos durante o Concílio de Trento.
A Igreja Católica era, à entrada do século XVI, a maior organização nos diversos países da Europa Ocidental e praticamente monopolizadora do negócio das almas. Fora algumas minorias (os Judeus) a esmagadora maioria da população era profunda e convictamente cristã e a Igreja era a instituição que enquadrava a prática do culto e determinava os princípios da Fé.
Apesar do seu emorme poder, era uma instituição em profunda crise. Dentro dela numerosos interesses e tendências, muitas vezes contraditórios entre si, procuravam determinar o seu destino. As discussões não se limitavam ao mero debate teológico, que era fogoso e autêntico, mas também ao papel do clero e ao exemplo que este deveria dar. Na verdade, havia vastas razões de queixa pela forma como parte dos membros da Igreja exerciam a sua função pastoral e como se comportavam perante os fiéis. A começar no vértice do poder: o Papado.
Mesmo no interior da instituição grassava o descontentamento e algumas tendências atingiam o limite da heresia. Vários ousaram ultrapassá-lo e pagaram com a vida. Nada que não tivesse já acontecido em séculos anteriores, em que tais dissidências, por vezes toleradas por certos períodos de tempo, acabaram com os seus mentores e respectivos seguidores perseguidos e, muitas vezes, aniquilados. Num ou noutro caso foram absorvidos, como no caso de S. Francisco de Assis e seus seguidores, incorporando-os nos debates internos da Igreja.
A novidade deste século XVI é que três desses movimentos deram lugar ao Protestantismo: Luteranismo, Calvinismo e Anglicanismo. Estas dissidências sobreviveram pelo apoio de parte significativa da população de certas regiões. Mas o factor fundamental foi a adesão de sectores significativos de membros da nobreza, tradicionalmente aliada da Igreja. Na Alemanha decidiu-se pelos argumentos de Martinho Lutero. Em Inglaterra, foi o próprio Rei Henrique VIII a dar origem à Igreja da Inglaterra. O Centro e o Norte da Europa, com algumas excepções (Polónia, Países Baixos), tornaram-se Protestantes.
Os séculos XVI e XVII conheceram terríveis lutas sectárias entre as diversas facções, seitas e Igrejas na Europa Central, tendo Portugal, a Espanha e a Itália sido poupadas porque se mantiveram sempre do lado Católico. Aí, as manifestações de heresia e de dissenção foram minoritárias, quase sempre reduzidas a uma elite intelectual e, por isso, controláveis.
Contra a dinâmica da dissidência, a Igreja respondeu com o Concílio de Trento. Ocorrido intermitentemente entre 1545 a 1563, foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da Fé e a disciplina eclesiástica. Isto é, destinou-se a determinar os princípios e dogmas fundamentais e, por outro lado, a reorganizar e restabelecer a ordem nos membros do clero e nos próprios fiéis.
Deste Concílio saiu a ideia, entre muitas outras, de que para revigorar a Igreja Católica era fundamental introduzir uma nova retórica, fomentando junto dos crentes uma nova confiança através de uma renovada capacidade de transmissão da sua mensagem.
A ARTE surge, assim, como uma das armas desta renovação, assumindo-a nas suas características temáticas e formais. A Igreja Católica quis marcar o contraponto à sobriedade e à iconoclastia do Protestantismo, levando os artistas a criar obras que se destinavam a emocionar e a incrementar a devoção mais através das sensações do que da razão.
Além disso, cenas de nus, temas pagãos ou cenas escandalosas foram proibidas, chegando-se ao ponto de sobrepor discretos panos sobre as “vergonhas” das figuras nuas pintadas nas paredes da Capela Sistina, no Vaticano, por mestres como Miguel Ângelo a mando dos papas que antecederam estes novos tempos.
Não significa que o Barroco tenha sido um estilo exclusivamente católico ou religioso. Também artistas das novas religiões reformadas utilizaram os mesmos princípios estéticos, embora com resultados diferentes (em geral, mais sóbrios). Igualmente, os reis e senhores da época mandaram fazer obras para si, com dupla intenção: salientar o seu poder junto de súbditos e dos inimigos (propaganda) e deixar marca visível da sua passagem pela vida. Também plebeus, com maior ou menor fortuna, mandaram fazer obras como forma de afirmação social recorrendo à nova estética, exigindo, quase sempre, uma maior aproximação à realidade.
Outro produto da Reforma Católica foi a fundação da Companhia de Jesus (os jesuítas) uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados por Santo Inácio de Loyola. As “armas” desta nova ordem seriam a pregação e o ensino como formas de levar a cabo a missionação nos velhos e novos territórios. Por isso, criaram escolas, muitas delas ainda hoje referências na qualidade de ensino. Nos primeiros tempos, esta nova organização deu prioridade à missionação e desenvolveu uma actividade incessante tanto em território católico como nas terras recentemente descobertas e algumas ainda por descobrir. Os primeiros europeus a chegar à China depois de Marco Polo foram padres jesuítas muito apreciados por lá pelos seus superiores conhecimentos de astronomia e matemática.
Nesta sua missão, a oratória, como arte de persuadir pela palavra os incréus e de recordar aos fiéis o caminho da “verdadeira” Fé, foi por eles elevada a verdadeira arte.
O Padre António Vieira é, portanto, fruto da nova estética saída do Concílio de Trento, beneficiando da aprendizagem que as novas escolas proporcionaram e assumindo com empenho e militância a missionação. Os seus celebrados Sermões são, só por si, obras-primas da literatura em Língua Portuguesa. Mas não podem ser inteiramente compreendidos sem que se entenda a época e os homens que a viveram.
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Pedro Semedo
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