quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Um belo texto de Vieira


"Dizei-me, qual é mais poderosa, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte e a natureza, por que havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus, acompanhada da vossa indústria? Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois, trabalhai e continuai com ele — que nada se faz sem trabalho e perseverança — aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo."


Fragmento do sermão do Espírito Santo, parte VI, pregado pelo Pe. António Vieira, na cidade de São Luís do Maranhão, na igreja da Companhia de Jesus, na véspera da partida de uma grande missão de jesuítas para o alto Amazonas, por 1652.

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